domingo, 31 de janeiro de 2010

Histórias da esquerda

A caneca do chá que tinha bebido na noite anterior, mesmo antes de fechar os olhos para dormir, desatou a saltitar em cima da mesa de cabeceira. Foi isso que a despertou antes de ter dado conta de que tinha sido o despertador quem tinha posto a caneca a tremelicar daquela maneira. Ainda de olhos semi-cerrados, deu ordem à mão esquerda para se ver livre do trrrluuu, trrrluuu. No escuro, a mão fez o melhor que pôde, é claro, para parar com aquele barulhinho tão irritante. Tentando guiar-se por ele, avançou às cegas. Tinha de chegar ao despertador antes que ela abrisse os dois olhos por completo. A pressa era tanta que acabou por esbarrar na caneca que, azar dos azares, tinha um fundo de chá. Atrapalhada, tentou segurá-la, mas já era tarde demais. Ouviu-se primeiro o tunc da caneca a bater no soalho e, logo de seguida, a voz dela a reclamar. Merda!, foi a primeira palavra que lhe ouviu. A mão esquerda não entendia por que razão insistia ela em deixar o raio do fundo de chá na caneca. Certa vez ouviu-a dizer que era porque aquilo ficava muito doce lá mesmo no final e que isso a desagradava. Mas então e as vezes todas que se servia dela para levar bombons à boca? E pastéis de Belém e bolas de Berlim. Servia-se dela e não só, da mão direita também. Claro que essa, embora irmã gémea, era mais choninhas e desculpava-lhe muitas coisas. Desculpava-lhe ela não saber usá-la para escrever, pôr fita-cola nos presentes ou mesmo para tirar as tampas apertadas aos frascos. Na opinião da mão esquerda, a mão direita era-lhe submissa, fazia o jeitinho quando era preciso. Estava a mão esquerda no meio destes pensamentos todos quando sentiu ser encaminhada para o olho esquerdo. Esfregou-o energicamente, a mão, e gargalhou. Aquilo sempre lhe fez cócegas e ela sabia. Na volta, a cena da caneca do chá a estatelar-se no chão até não a tinha perturbado assim tanto. Se calhar até nem ia levar nenhum sermão. Viu-a levantar-se, pegar na toalha e dirigir-se à banheira. Iam entrar no banho. Mal ela ligou o chuveiro, começou a lenga-lenga do costume: a minha guerra diária com a mão direita sobre quem lhe lava melhor o cabelo. Sou eu! Eu é que lhe lavo melhor o cabelo, e não admito contrariedades, respingou a mão esquerda. E, sim, isto dava pano para mangas, mas como o dia não começou da melhor maneira, o melhor é pôr já um ponto final na história.

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