sexta-feira, 3 de novembro de 2023

A imaginação é que sabe

Fazia colares com contas coloridas, muitas de diferentes formas e tamanhos e texturas. Desenhava linhas preto no branco, copiando o que os olhos observavam. Também escrevia. Sobre tudo e sobre nada. Gostava daquele ritual de dar permissão aos dedos para tocar o teclado no compasso que bem entendessem, ora freneticamente ora num ritmo preguiçoso. Certo dia, querendo dar espaço a um novo afazer, decidiu espicaçar a imaginação.

- Se te pedisse um desafio mesmo, mesmo difícil de cumprir, qual seria ele?, perguntou.

- Se me pedisses um desafio mesmo, mesmo difícil, sugeria que aprendesses uma língua diferente, respondeu a imaginação.

- Oh, isso não é um desafio muito desafiante, respondeu ela.

- Calma, disse a imaginação, não me deixaste terminar. Esse desafio seria para ser posto em prática no mundo dos sonhos, durante a noite.

- Como?, perguntou ela, de olhos espantados. 

- Quando vais dormir, sonhas todos os dias que estás a aprender uma língua nova. E quando acordas, percebes que vais evoluindo… até saberes de cor todas as palavras que aprendeste.

- Ah, respondeu ela, isso, sim, é um desafio mesmo, mesmo catita.


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Sortazar, um misto de sorte e azar

De todos os botões das camisas dela, os dois primeiros a contar de cima podiam ser considerados os mais sortudos. Digo podiam por duas razões: porque são privilegiados com a melhor vista, quase como se vivessem no topo de um prédio alto cujo telhado assume a forma de colarinho, e porque quando saem à rua estão só ali a respirar ar puro, sem nunca serem apertados. O azar dos dois primeiros botões a contar de cima é que ela raramente usa camisas. E pior do que isso, mantém-nas dentro do armário, penduradas nos cabides e presas pelos dois botões a contar de cima. Vidas.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

A little bit of magic dust

A vida é feita de encontros, desencontros e encontrões e a magia pode acontecer, especialmente, nos encontrões. Foi naquele esbarrar acidental de ombros que o pensamento dela despertou para a realidade, assim à bruta. Pediu desculpa, “peço desculpa”, puxou a alça da mala de volta ao ombro e seguiu caminho calçada acima.

O cursor piscou durante longos segundos, numa sintonia lenta como o piscar dos meus olhos. Uma notificação no telemóvel foi a melhor desculpa para me distrair do seguimento a dar ao texto. “Então, o teu dia?”, li no visor. Abri a mensagem, respondi um “okayzinho” deslavado e acrescentei: “E o teu?”

O cursor continuou a piscar à espera que as palavras chegassem umas atrás das outras e eu queria muito alimentar o cursor com um turbilhão de letras que formassem essas palavras, de preferência mágicas. Palavras com sentido, sentidas.

Seguiu caminho calçada acima, sem retomar o pensamento perdido no encontrão acidental e sem sequer se aperceber de que alguém lhe seguia os passos apressados. Virou-se para trás ao toque no ombro e afastou um dos phones do ouvido.

- Deixaste cair isto…

Levou o dedo indicador ao pause do Spotify e os Depeche Mode calaram-se.

- Desculpe?

- Deixaste cair isto quando tropeçámos um no outro ali atrás…

- Ah, não é meu…

A vibração do meu telemóvel voltou a interromper a conversa entre os dois estranhos. “Continuo com as costas numa lástima”, dizia a nova mensagem. “Tens um date hoje. Pede uma massagem (emoji sorrisinho malicioso)”, disse eu. “Não queres ir por mim? Vais lá, falas bem de mim, acompanhada de uma apresentação PowerPoint”. Sempre achei piada à troca de mensagens entre nós. O humor dela alimenta-me a inspiração, que anda abaixo-de-cão. Cão de perna curta, acrescente-se, para tornar a coisa mais dramática. Um corgi, um basset hound ou um dachshund, qualquer um destes pequenos serve para ilustrar a expressão canina abaixo-de-cão.


quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Overthinkar

Devia ser fácil controlar pensamentos. Refrear com uma trela os que nos assolam apressados, enfiar um açaime naqueles que nos gritam, exasperados. Quando eles, os pensamentos, se lembram de aparecer todos ao mesmo tempo, sem sequer terem recebido convite prévio, é como se o concerto do ano fosse acontecer naquele instante. Sentimo-nos como a celebridade enfiada no camarim, com todos os fãs, os pensamentos, enfiados lá dentro connosco.

Assim não vai dar,

sou a estrela do overthinkar.

respirar o 4 7 8, meditar.

É a corrida ao título,

Pensamento do Ano,

És voraz, mano.

Comes tempo, 

Voas rápido, és vento.

Pensamento.


terça-feira, 22 de agosto de 2023

Da liberdade

Abriu a porta, saiu para a rua e teve a sensação de que vários sopros se dirigiram ao pescoço dela. Os cabelos pareciam comportar-se como se fossem pernas na natação sincronizada. Saltitantes, todos num alvoroço, felizes por continuarem a roçar um pedaço de pescoço e entusiasmados por manter a distância dos ombros. É que a distância entre a ponta dos cabelos e o ombro é um marco de liberdade (para os cabelos). Agora já não há elásticos que possam oprimi-los. Foi isso, ela cortou o cabelo acima dos ombros só para lhes trazer contentamento. Aos cabelos. E aos ombros.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Cento e vinte segundos

Escova os dentes e olha-se ao espelho enquanto conta os minutos. Dois minutos, ou seja, duas vezes sessenta segundos. Em cento e vinte segundos, sobra-lhe mais que tempo para avaliar o rosto. Eleva as sobrancelhas, faz um sorriso forçado com a escova a rodopiar nos dentes e toma nota mental das rugas novas. Aproxima-se do espelho. Franze os olhos. Aquela estava ali ou é nova? Baixa a cabeça a caminho do lavatório e vê-se livre da espuma branca que guarda na boca. Volta a olhar o espelho e a frescura do sabor a menta invade-lhe o paladar. O que importa aqui decorar não é o número de rugas novas. É o número de minutos que deve demorar a escovagem dos dentes. Dois minutos, ou seja, cento e vinte segundos. E levar na boca o sabor a menta.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Cheira a limão

Encostou a testa na janela e sentiu no corpo o peso da falta de sono. Ficou ali de olhos calados, presos como velcro no fio do horizonte, a boca semicerrada, dormente pela ausência de palavras. Uma gota de suor mais atrevida escorregou por entre os contornos do seu rosto imóvel e forçou a entrada no canto da boca. Sentiu-lhe o sabor a sal. Com a ponta da língua, tocou aquele canto. Ao mesmo tempo, forçou um pestanejar de olhos. E mais outro. Quanto tempo terá passado desde que deixou o bolo a crescer no forno?, pensou. Com passos curtos, assim como se estivesse em traje de gueixa, deslizou os pés descalços pela tijoleira fresca, aproximou-se do fogão, abriu a porta do forno e sentiu um bafo de calor escaldante, como se estivesse num deserto com cheiro a limão, a bolo de limão. Agora sim, os sentidos estavam todos despertos. Como o sono.